sábado, 29 de julho de 2017

Solidão ou minha biografia cabe num simples haicai

Solidão, esse escafandro de aço que visto. Esse profundo mar de pequenas coisas insignificantes. Pequeno quarto de descomunais significados. Conheço de cor o costume dos pescadores noturnos, as pragas dos mochos, o ensaio do choro afinado das carpideiras, a maldição da licantropia. Eu também sou meio bicho, meio lobo. Eu também enlouqueço nas noites de lua. Todos os homens têm uma grande história para contar. Uma biografia rica de detalhes. As tristezas e angústias dos outros dariam um grande filme... Toda a minha vida cabe num simples haicai japonês, um artesão das palavras talvez conseguisse construir um soneto com os fragmentos pobres dos acontecimentos da minha vida. Mas tenho certeza que de um soneto não passaria. Sou apenas um solitário que conhece as constelações, o mapa das marés e os horários dos trens. Ser solitário significa conhecer bem as montanhas, os rios, a poesia. A leitura é o ópio de um homem solitário. A solidão nos brinda com certos poderes que beiram o sobrenatural. A metafisica é um portal para o conhecimento interior. Apenas um baixo muro separa o conhecimento interior de um quarto branco de um manicômio. A solidão é assaz proveitosa para quem tem uma alma desbravadora das coisas incorpóreas. O mundo como vemos da janela soa pobre para quem procura pistas obscuras em dimensões que parecem estranhas aos homens comuns.

Solidão, essa cabana furada, essa busca pelo tudo, essa luta por nada, essa confusão de algoritmos, esses signos sem significados aparentes. Esses tantos caminhos. Conheço de perto as estações. A boca vulcânica do verão, o desalinho do outono, a insensatez do inverno, a promiscuidade da primavera... As lutas das virgens, os conflitos das mulheres, o sentimento dos homens. O ser humano tem ojeriza da solidão. A solidão tem cara de morte, amiúde. A solidão é um bicho, uma doença maligna, um nevoeiro infernal, assim pensam.  Não conhecem a solidão, de fato. Essa entidade silenciosa, musical, aberta as cores, aos mundos, as resoluções. A solidão é a mãe das artes, das atitudes, dos fenômenos mágicos que transformam as almas. A solidão é a única embarcação capaz de tirar o homem da ilha do si mesmo. É a solidão que me faz enxergar minha pouca história, meu pouco de mim. Sem ela, eu talvez acreditasse que eu caberia num imenso livro cheio de bobagens, mas a solidão me ensinou que nada sou, e caibo em qualquer haicai de guerra ou de paz, aí depende da visão do autor.

Radyr Gonçalves

TREZE

 

TREZE

Tenho te ligado a todo instante,
uma média de treze vezes por minuto,
para cada um dos três números teu que tenho,
e todos estão mudos e surdos.

Faz treze dias que não te vejo,
e que tu não me vês, ou me cheiras,
ou me ouves, ou me sentes, ou enxergas,
ou me ressuscitas...

Aqui jaz, nessa sepultura do silêncio,
há treze dias, minha tatuagem desbotada
dos meus treze pássaros,
minha pele escurecida, minha própria vida.

Ainda ressoa a tua mentira no ar:
— Eu vou aí, hein!
Como costumavas me ameaçar...

E na contagem estática do meu mundo inerte,
amanhã também será treze dias,
esse número que me persegue,
que me enlouquece,
e me possui por inteira.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Amanhã, quem sabe tu?

Lilly Araújo - 29/07/17

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Fragmentada


Fragmentada

O relógio quer que eu acompanhe seus ponteiros,
os teclados insistem para que eu os acaricie,
a música murmura segredos que não quero entender,
eu só quero deitar e esquecer.

Todos querem um pedaço de mim!
O cão abanando o rabo;
o pés da mãe que pedem massagem, exaustos;
o agente de saúde que finge fiscalizar se há água parada
para combater do mosquito da dengue,
mas que no fundo, assim como eu,
quer apenas agitar suas próprias águas paradas:
— As da alma!

Todos querem um pedaço de mim!
E eu já estou tão nada,
que não me sobra causa alguma para lutar.
Transformo-me em riso branqueado à força,
só para sorrir para o público da vez.

Não sei qual parte de mim está mais insossa,
porque eu-aos-pedaços
não caibo em nenhum espaço,
em nenhum abraço...

E todos continuam a exigir de mim.
Quisera eu evaporar no espaço,
e negar a todos o que todos me negam:
— dar-me de si mesmos um pedaço!

Lilly Araújo – 26/07/17
20:50h

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Distopia



 
Distopia

Eu conheço os passos da dança,
mas piso no teu pé de propósito.
Eu conheço as regras do jogo,
mas adoro a infração a que me proponho
todas as manhãs.

Eu reconheço o seu xeque-mate,
mas viro o tabuleiro,
confundo todas as peças,
e ferro com tua cabeça,
só para sorrir à noite.

Eu conheço todas as lágrimas,
mas as escondo num vidro
com tampa fechada à vácuo,
e o pote só se quebra nas madrugadas,
onde eu não reconheço mais nada.

Lilly Araújo - 17/07/17

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