Mesmo o mais corajoso entre nós
só raramente tem coragem para aquilo que ele realmente conhece", observou
Nietzsche. É o meu caso. Muitos pensamentos meus, eu guardei em segredo. Por
medo.
Alberto Camus, leitor de
Nietzsche, acrescentou um detalhe acerca da hora em que a coragem chega:
"Só tardiamente ganhamos a
coragem de assumir aquilo que sabemos". Tardiamente. Na velhice. Como
estou velho, ganhei coragem.
Vou dizer aquilo sobre o que me
calei: "O povo unido jamais será vencido", é disso que eu tenho medo.
Em tempos passados, invocava-se o
nome de Deus como fundamento da ordem política. Mas Deus foi exilado e o
"povo" tomou o seu lugar: a democracia é o governo do povo. Não sei
se foi bom negócio; o fato é que a vontade do povo, além de não ser confiável,
é de uma imensa mediocridade. Basta ver os programas de TV que o povo prefere.
A Teologia da Libertação
sacralizou o povo como instrumento de libertação histórica.
Nada mais distante dos textos
bíblicos.
Na Bíblia, o povo e Deus andam
sempre em direções opostas.
Bastou que Moisés, líder, se
distraísse na montanha para que o povo, na planície, se integrasse à adoração
de um bezerro de ouro. Voltando das alturas, Moisés ficou tão furioso que
quebrou as tábuas com os Dez Mandamentos.
E a história do profeta Oséias,
homem apaixonado!
Seu coração se derretia ao
contemplar o rosto da mulher que amava!
Mas ela tinha outras idéias.
Amava a prostituição. Pulava de amante e amante enquanto o amor de Oséias
pulava de perdão a perdão.
Até que ela o abandonou.
Passado muito tempo, Oséias
perambulava solitário pelo mercado de escravos. E o que foi que viu? Viu a sua
amada sendo vendida como escrava. Oséias não teve dúvidas. Comprou-a e disse:
"Agora você será minha para sempre.".
Pois o profeta transformou a sua
desdita amorosa numa parábola do amor de Deus.
Deus era o amante apaixonado. O
povo era a prostituta. Ele amava a prostituta, mas sabia que ela não era
confiável.
O povo preferia os falsos
profetas aos verdadeiros, porque os falsos profetas lhe contavam mentiras.
As mentiras são doces; a verdade
é amarga.
Os políticos romanos sabiam que o
povo se enrola com pão e circo.
No tempo dos romanos, o circo
eram os cristãos sendo devorados pelos leões.
E como o povo gostava de ver o
sangue e ouvir os gritos!
As coisas mudaram.
Os cristãos, de comida para os
leões, se transformaram em donos do circo.
O circo cristão era diferente:
judeus, bruxas e hereges sendo queimados em praças públicas.
As praças ficavam apinhadas com o
povo em festa, se alegrando com o cheiro de churrasco e os gritos.
Reinhold Niebuhr, teólogo moral
protestante, no seu livro "O Homem Moral e a Sociedade Imoral"
observa que os indivíduos, isolados, têm consciência. São seres morais.
Sentem-se "responsáveis" por aquilo que fazem.
Mas quando passam a pertencer a
um grupo, a razão é silenciada pelas emoções coletivas.
Indivíduos que, isoladamente, são
incapazes de fazer mal a uma borboleta, se incorporados a um grupo tornam-se
capazes dos atos mais cruéis.
Participam de linchamentos, são
capazes de pôr fogo num índio adormecido e de jogar uma bomba no meio da
torcida do time rival. Indivíduos são seres morais. Mas o povo não é moral. O
povo é uma prostituta que se vende a preço baixo.
Seria maravilhoso se o povo
agisse de forma racional, segundo a verdade e segundo os interesses da
coletividade.
É sobre esse pressuposto que se
constrói a democracia.
Mas uma das características do
povo é a facilidade com que ele é enganado.
O povo é movido pelo poder das
imagens e não pelo poder da razão.
Quem decide as eleições e a
democracia são os produtores de imagens.
Os votos, nas eleições, dizem
quem é o artista que produz as imagens mais sedutoras.
O povo não pensa. Somente os
indivíduos pensam.
Mas o povo detesta os indivíduos
que se recusam a ser assimilados à coletividade.
Uma coisa é a massa de manobra
sobre a qual os espertos trabalham.
Nem Freud, nem Nietzsche e nem
Jesus Cristo confiavam no povo.
Jesus foi crucificado pelo voto
popular, que elegeu Barrabás.
Durante a revolução cultural, na
China de Mao-Tse-Tung, o povo queimava violinos em nome da verdade proletária.
Não sei que outras coisas o povo
é capaz de queimar.
O nazismo era um movimento
popular. O povo alemão amava o Führer.
O povo, unido, jamais será
vencido!
Tenho vários gostos que não são
populares. Alguns já me acusaram de gostos aristocráticos. Mas, que posso
fazer?
Gosto de Bach, de Brahms, de
Fernando Pessoa, de Nietzsche, de Saramago, de silêncio; não gosto de
churrasco, não gosto de rock, não gosto de música sertaneja, não gosto de
futebol.
Tenho medo de que, num eventual
triunfo do gosto do povo, eu venha a ser obrigado a queimar os meus gostos e a
engolir sapos e a brincar de "boca-de-forno", à semelhança do que
aconteceu na China.
De vez em quando, raramente, o
povo fica bonito.
Mas, para que esse acontecimento
raro aconteça, é preciso que um poeta entoe uma canção e o povo escute:
"Caminhando e cantando e seguindo a canção.". Isso é tarefa para os
artistas e educadores.
O povo que amo não é uma
realidade, é uma esperança.
http://rubemalves.com.br/site/". Isso é tarefa para os artistas e educadores.
O povo que amo não é uma realidade, é uma esperança.