quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Poema inquisitivo




Poema inquisitivo

Para que falar de amor,
esse sentimento ufano,
tão triste e às vezes
tão desumano ?

Para que dizer o que se passa,
se ninguém há de ouvir,
e se ouvindo por acaso,
apenas há de sorrir...?

Para que sonhar,
desejar, relembrar,
revirar-se na cama debalde,
se tudo isso parece um ledo engano,
apenas uma fraude ?

Não sonhemos mais,
não entristeçamos os olhos
com esse sentimento atroz,
que revira o peito sem piedade
perguntando por “nós”.


Lilly Araujo 24/02/16 (13h)

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Enlace matrimonial


Enlace matrimonial

Acordar!!!
E estar viva sob a água tépida e intrusa
e bem-vinda!
Essa, que caminha sob os poros eriçados
do meu corpo desnudo.
E senti-la em cada curva percorrida,
como convite a um mergulhar profundo...

E sobre a minha tez descer o líquido,
quase um néctar do paraíso,
a escorrer pelo canto da minha boca,
e cair em cascata, pelos picos dos seios,
ao encontro do lago, que agora se forma
entre as coxas cerradas uma contra a outra.

Desse lago escutar enfim, as vozes
das ninfas e sereias que habitam ali
quase em silêncio proibitivo.

E respirar o vapor denso no ar,
e estar viva.
E me pertencer! E ser minha!
Mente, corpo, espírito e alma.
E me levar até o altar com calma...

E me encarar e sorrir, e me
inebriar com o cheiro do jasmim,
e dizer: — Sim!

Lilly Araujo 21/02/16 (8:00 Am)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Vai passar


















Vai passar


Vai passar!!
Nos tropeços das teclas,
nos soluços das lágrimas,
eu digo a mim mesma
que vai passar...

No vazio impreenchível,
da esperança desesperada
daquilo que nunca chega,
e nunca se vai de vez,
eu digo que vai passar...

Vai passar?!
E se passar?!
E quando passar?!

O que fica de mim,
que não seja essa eu
aguardando você regressar?!

Vai passar? !
E passando, o que resta de mim
é um ser desconfigurado
que não sei aceitar.

Vai passar!
E se passar,
e quando passar,
— o valeu a pena?

O que se deve pedir bis?
O que foi sonho?
O que foi paraíso?
Pra onde aquele cheiro?

E se no fim, tudo passa,
então para quê tudo isso??


Lilly Araújo 27/12/15  (12:39h)

domingo, 14 de fevereiro de 2016

O embrulho

















O embrulho

Eu sei que sou bela!
Possuo uma beleza singela,
às vezes chamada de anjo,
às vezes com cara de sapeca,
às vezes, até sedutora,
— Por que não?

Eu sei que possuo uma
casca incrementada,
acima da média, apesar de
bem abaixo do ideal.
É uma casca sim, e mais nada!
E é onde minha alma habita prisioneira,
muitas vezes com vontade de voar...

Viva o culto à beleza!?
— Sim, vivamos, e
deixemos de falsas modéstias!
A beleza está aí para ser aprovada,
reprovada, procurada, lapidada...

Mas, antes de me despirem as roupas,
por onde andam os olhos
dispostos a ir além?

Essa casca de porcelana, tão frágil,
tão ínfima, tão momentânea,
é só um “embrulho” mais adornado,
de um ser que vive e que pulsa
num silêncio não deflagrado.

Um SER que É!
E sendo, tem sede de gritar:
— Ei, estou aqui dentro,
quem pode me encontrar?!


Lilly Araujo 14/02/16

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Ufania

















Ufania

Não te quero!
E quero!!
Na mesma direção
oposta do insano.
E te idolatro, no culto
essencial ao profano.

És santo. És noite e dia,
e lua, e nuvem,
e chuva de querer bem.
Esperança nascida
no Menino de Belém.

És a vinda inesperada
e a partida sem retorno.

Sou porto sem chegada,
e carnaval sem adorno.

Lilly Araújo 12/02/16 (00:53h)


quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Eu gosto da noite



Eu gosto da noite


Como não gostar da noite?
Se só ela me presenteia com seu silêncio ímpar
que se mascara de ruídos discrepantes
da loucura que me fere os tímpanos
no decorrer do dia.

Como não gostar da noite?
Se nela há paz para meus olhos
na penumbra que rechaça toda a minha loucura
e que disfarça as pálpebras inchadas
das lágrimas que sempre me visitam.

Como não gostar da noite?
Se quase todas as poesias nascem nela,
embaladas na sua melodia hipnótica
que dita as notas para se dançar,
para se compor, para se viver,
e para se morrer.

Eu gosto da noite!
Como não gostar?
Se à noite, em sonhos,
é quando tu retornas
para me amar.

Lilly Araújo 03/02/16


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Tudo outra vez


<< Quem és? Perguntei ao desejo.
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada. >>
Hilda Hilst
Tudo outra vez

Este ano te deixei em paz até hoje.
Hoje que já são dia 03
do segundo mês.

Nenhuma intervenção
no seu cotidiano,
nenhum toque ao seu telefone,
nenhum cutucar nas redes sociais.

Este ano de 2016
me concentrei em coisas várias,
em diversos afazeres ...
e planos ... e devaneios...
e em cada uma delas,
encontrei um motivo qualquer
pra me lembrar de você,
ou do ‘não você’ em minha vida,
há tanto tempo...

Este ano me custou disciplina,
e o exercício constante
de lembrar de te esquecer.

Mas hoje,
como um ébrio que volta ao vício,
esqueci todo exercício,
e me debrucei
sobre a arte de te caçar...

Assim é o desejo:
— lava, vulcão, pó, nada...
e depois tudo outra vez


Lilly Araújo 03/02/16

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Eu sei, mas não devia



Eu sei, mas não devia
Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(1972)

Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.


O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.

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