segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Fernando Coelho


Trecho do diário de um autor desnecessário. Nunca mentira para uma mulher. Mas mentira, para si próprio. Não separava a manhã do dia. Começava a escrever cedo. Não tinha dimensão da solidão. Isso, de escrever, era o mais alto degrau de um infernal diálogo que travava. Da escrita e dele. Era uma relação desesperadora. Compreendia que escrever era mortal. Na mesa de vidro um vaso vermelho. Não tinha nenhum significado, não mais do que um ponto cego pra onde olhava. Uma decoração lerda. Era comum. As palavras rugiam de cavernas com fedor de alma. A maioria delas queria ficar onde estava, ou aparecerem escritas numa mesma palavra. Indomáveis. O seu trabalho era dissociá-las, dissecá-las, provocar-lhes um aborto de origem, socá-las o âmago amorfo. A sala não era maior do que o seu horizonte. Não entendia de medidas. Não podia comparar. Cada palavra tinha um significado. Achava-se um homem de significados. Mas entendia pouco de comportar-se, alimentar-se, dizer-se, precaver-se, alinhar-se, iludir-se, comprazer-se, animar-se, sonhar-se. Entendia somente daquela embocadura cavernosa, dilacerante, a lhe acumular emoções. Era isso sim, um transeunte, irmão de árvores sozinhas, parente próximo das portas que estavam ao seu redor. Os barulhos da rua, gritos, serras elétricas em prédios em construção, cachorros latindo, makitas cingindo granito, gente alegre por nada, automóveis, eram o fundo musical que mais gostava. O seu ato de escrever nunca foi reparador. Travava-lhe as costas quanto mais expunha o coração sanguinário e decomposto em cismas. Não tinha uma filosofia rígida que o fizesse entender o céu, nem colher a chuva, nem dimensionar quando não tinha trabalho. Não há trabalho para escritores. E ele era do pior tipo: rabugento, intragável, vil no trato, escanhoado de paciência, calvo de tolerância. Um letrado que não servia para o mercado. Era um escritor parecido com qualquer um: os que gostam muito de aparecer como escritor, sem saber escrever, mas com livros publicados e tudo, com os jovens escritores que amam suar os dedos para juntar expressões, ainda mais sobre rebeldia e amor e sexo. Ninguém quer escrever sobre guerras. Mas ele gosta, porque no fundo, ele mesmo é uma, ingênita, explosiva, miserável, pobre e fratricida. Hoje mesmo acha inútil escrever. Mas não é um ato separado dele. Se não o fizer, chora, procura matar-se na cozinha, olhando o fogo queimar a comida. O apetite afoga o seu dia. Se não escrever, é um sujeito pior, desordenado, ignorante, triste. Sua melhor companhia é a melancolia. Porque escrever não é um gesto, nem desagravo, nem uma ação cordial. Ele escrevia encurralado. Não tinha nenhuma saída. Entrega-se à própria prisão informal e escreve. Tem alguma convicção de que os escritores, quase todos, sentem o mesmo. Mas disfarçam numa taça de vinho de safra duvidosa, em noite de autógrafos de amigos distantes. Miseravelmente, ele ainda tem um problema: como não suporta ler o que escreve, espera, espera, ambíguo e atônito, que lhe apareça um leitor, apenas um. Ou morrerá sem apelo. E só.

Fernando Coelho.
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